segunda-feira, maio 15, 2017

No que é que você pensa enquanto a água quente passa por entre o pó e cai lá embaixo preta, exalando o aroma da promessa das melhoras? Eu penso no próximo cigarro da tarde, o nono do dia, na fumaça morna que trago com o malabarismo correto que faz as pontadas nos braços e nas pernas sutilmente se acalmarem, eu olho para trás e vejo o olhar inquisidor do gato, a me perguntar e a me pedir algo que nunca alcançarei e penso o que esse gato quer, esse gato em sua servidão e quietude quer um mínimo de coisas que eu nunca conseguirei oferecer completamente, penso em tragar um pouco mais forte pois as agulhas do dorso da mão e da ponta dos pés subiram agora prá dentro do peito e se juntaram numa grande lâmina fria que aos poucos cava buracos ali dentro, tento arrancá-la com a fumaça mas ela tem a forma de um anzol e só sairá dali quando sua haste for cortada pela tesoura de uma satisfação inexistente.

Eu penso nas páginas que tenho a devassar em livros e nas páginas que preciso possuir de novo, em todas as páginas que é necessário comer prá gestar e parir novas páginas que provavelmente morrerão virgens. Penso se eles ainda me amam, até onde se estica o laço do amor, quanto falta prás suas últimas fibras se romperem e me deixarem do outro lado das coisas, presa pela cintura a uma corda roída pelo tempo que não dá para lugar nenhum. Eu passo a mão pela capa dos livros.

Desfaço a rosca da tampa da garrafa e me sirvo mais um pouco de café, engulo na esperança de que ele esquente o anzol frio do peito, refoleio as páginas e passo meus dedos pelas entranhas do livro, as letras mortas pulam nos meus olhos mas não me seduzem, eu preferia ter com elas uma leve conversa a ter que degluti-las de novo, olho para trás e vejo o olhar semi-cerrado do gato, ele já não quer mais nada e por isso mesmo sei que estava certa, as coisas que tenho para oferecer, delas ele não precisa mais, desligo a máquina de lavar e aprumo os ouvidos, ouço o berro das sirenes na rua e não escuto o canto das sereias nos livros, é preciso força e concentração para levar essa relação comensal adiante, eu penso agora na minha sanidade mental, vigio meu pensamento e tento entender por quais frestas escapam as coisas que penso, olho para as pontas dos dedos e elas estão todas cerradas à exceção dos pequenos vincos circulares existentes na ponta de todos os dedos e sei que é dali que as palavras escapam, depois de forjadas em algum oco dentro de mim que não enxergo e não consigo tocar.

Apalpo o topo ensebado dos meus cabelos e penso que é melhor as palavras voltarem logo para dentro da minha cabeça eu preciso ter toda a razão agora eu preciso andar com calma eu preciso continuar, eu preciso achar o fio condutor eu não aguento mais outra garrafa de tinta preta e amarga outros cinco minutos de administrar fumaça, eu preciso forjar um amor aqui mesmo, em cima dessa mesa, eu preciso, eu preciso, eu preciso, eu devo tanto.