sábado, outubro 22, 2005

Ausência

As folhas brancas riscadas em pontos estratégicos por cinco linhas, bem próximas umas das outras. Um caderno de música mais ou menos completo. Claves de Sol feias, feias, mais ou menos, com a ponta de cima torta e, finalmente, perfeitas.
Ele tinha ambições e ela nunca as conheceu. Agora já não mais adiantaria apertar contra o peito as folhas riscadas pela letra dele, tampouco levar o caderno a altura das narinas e cheirá-lo.
Sentia um aperto estranho no peito, como se toda ela fosse reduzir-se àquele aperto, como se aquela dor fosse torná-la pequena; minúscula ao ponto de poder passear entre as notas que ele havia desenhado nas pautas.
Desviou a visão - agora obviamente embaçada - da partitura amadora, e acalentou o quarto com os olhos. Cada objeto antes sem propósito, cada dobra nos lençóis da cama em que ele havia dormido pela última vez, cada peça de roupa que ele deixara pelo chão talhava-lhe o corpo de um jeito tão denso, que ela temeu sujar o chão com a essência que escapava de sua alma pelos buracos recém abertos.
Não era exatamente a ausência dele ali o que tanto lhe doía. Seu choro tornava-se solto e inconsolável quando ela pensava na ausência dele em todo um mundo.
Quantas tantas coisas maravilhosas aindam existiriam perfeitamente sem a presença de seu filho, e quão admirado ele poderia ficar em contemplá-las, em sentir todo um mundo.
Aqueles olhos escuros e negros que se deixavam estar atrás de óculos grossos, o sorriso que saía como se devesse se esconder, o cabelo caindo sobre a cara de menino tímido. Todo o seu filho agora se reduzia a ossos e vermes e terra e lembranças.
Chorava. E soluçava, e gritava, e esmurrava o travesseiro amassado sobre a cama, e arrancava das janelas a cortina já encardida, e se colocava de joelhos arfando e se culpando mais que qualquer outra pessoa já se culpou, por ter estado ausente quando devia estar próxima, por ter negado tanto, por ter dado tão pouca importância, e por ter saído de casa exatamente naquele dia, naquela hora, e não ter voltado a tempo de vê-lo com a arma na mão e o cano enfiado dentro da boca.


[Sem dúvida esse é um dos textos que mais me machucou prá ser escrito. Que mais demorou prá ser escrito. Se algum dia eu já tive alguma intimidade com as palavras, ao escrever esse texto ela se fez - hê hê hê ¬¬ - ausente. Inventar sentimentos e lidar com eles é uma coisa. Trabalhar com o seu e fazer dele texto, é outra.]


Ps: Não, não há nenhuma mensagem subliminar acerca do Desarmamento nesse post. Vão bater na mesma tecla em outro lugar, que isso aqui não é lugar de punheta retórica.

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