terça-feira, agosto 09, 2005

[Espelho]

Ia eu lá, subindo aquele tão odioso quanto íngreme morro de todos os dias, quase que perdida entre devaneios, hipóteses, raiva e sono, quando eis que, feito a pedra no caminho de Drummond, uma van se estacionou atravessada na subida. Fosse eu poetisa, faria do desconforto de ter de dar a volta pelo automóvel um poema. Contudo, eu sei lá que diabos sou, e era cedo demais pra pensar em versos.
Continuei então arfando meu sedentarismo e rumando morro acima, até que senti uns olhos passeando por mim. Mas passeando de um jeito diferente, não como se desejassem ou repudiassem a pele, não era isso. Pareciam perfurar a casca prá observar e tentar entender o que havia do lado de dentro.
Eu não podia ignorar aquela invasão e simplesmente continuar marchando pro ponto de ônbius. Virei-me e, como se fôssemos nós dois os únicos seres viventes do mundo, meus olhos se fixaram diretamente naqueles que me observavam, presentes [erroneamente, creio eu] no rosto de um garotinho. Pele clara, cabelos pretos e lisos, a cara virada pra fora da janela do carro e um jeito calmo de ignorar todas as outras crianças que se encontravam a seu lado.
Pouco mais de oito anos de vida e o meu jeito ladrão de olhar para os outros, prestes a roubar o pouco de essência que os gestos descuidados alheios deixam escapar.
Nem metade de minha idade e a audácia de me invadir assim, sutilmente, como é hábito meu fazer.
Mantive o contato visual, e ele parecia não ceder. Parada feito tola no meio da ladeira, o fôlego tomado pelo cansaço e pela surpresa, eu sentia esse garoto perceber o que eu era, e não alterar nem um músculo da face a cada momento de sua descoberta.
Muito tempo me pareceu passar nesses meus segundos de derrota, até que me senti descarnada e exposta o bastante prá me dar por vencida.
Tomei novamente o que seria meu caminho há instantes atrás [porque agora eu já não sentia mais ter um rumo], e terminei a subida, não sem praguejar o tal garotinho.
"Maldito. Aposto que vai chegar em casa e me usar num de seus escritos bestas. Hunf."



[É que a aula de fotografia tava meio chatinha, sabe. Câmara obscura, papel sensível a luz, num sei que lá de prata, blá blá blá. *bocejo.]

Sem comentários:

Enviar um comentário